Madrugada

Não vou mentir,
eu saí,
saí e estava frio lá fora,
saí do quarto empoeirado,
já passava das dez.

fui remoer ideias
longe da bagunça,
longe da loucura organizada,
procurando algum balcão.

fui me demolir ao vento.

não vou mentir,

eu bebi um pouco,
duas ou treze
doses
bebi em taças de cristal
bebi em copos de requeijão

estava feliz

por um momento...
eu parecia feliz

meu corpo estava contente,
dopado o bastante
anestesiado o bastante
mesmo que nunca parecesse o bastante

estava me programando para não sentir a pressão
de ser esmagado abismo a dentro

quem dera
não sentir nada.

voltei,

caminhei por trinta minutos
até a próxima quadra,
já passava das três,
não existe muita coisa às três;

latidos
murmúrios
zumbidos
buzinas distantes
ladrões
insetos confundindo
as luzes da rua
com a lua,
e algum trouxa insone
caminhando sozinho enquanto
carrega seus pedaços pela calçada,

há sempre alguém
criando mosaicos de si mesmo
com um pouco de ódio entre as peças

criando esperança
entre lágrimas e vômito
após uma alegria passageira,

há sempre alguém
tentando lembrar
o caminho de volta
por se sentir
perdido
entre os copos mágicos
que fazem esquecer

mas dessa vez
por mais que eu quisesse
não havia um caminho
para lembrar

não havia um caminho
que me levasse
pra onde eu desejava estar

então voltei pra casa,

queria que estivesse lá.

Sleeping

Escrevo falando, adquiri o habito de pensar alto. Eu falo sozinho. Escrevo enquanto falo para não ficar muito estranho. E tem funcionado. Parece possível enganar a loucura. Falo e as linhas passam, nunca leio mais de uma vez o parágrafo anterior. É difícil pra mim refletir sobre as coisas que escrevo, elas me causam ainda mais dúvidas. Me vejo como o escriba que anota uma denuncia, sem saber que está ouvindo o próprio culpado. Eu falo pouco em público, digo apenas o que devo dizer, porque as coisas mais banais eu digo à mim mesmo. As palavras me surpreendem, eu permito que surjam, e que fujam, nunca sei o que acontece à seguir. Nunca sei se irei capturar a conclusão ou ser morto por ela. Os pensamentos nascem e brotam no papel, são plantas venenosas que florescem e me sufocam de forma sutil. Ontem me disseram que alguma coisa estava diferente em mim, me disseram que meus olhos costumavam mostrar mais determinação. Eu sorri por um momento e não respondi. Sorri porque foi patético. Eu perdi o jogo, me entreguei e aceitei o xeque-mate, cansei de jogar com as pessoas. É um jogo viciante e sem fim. Não consigo mais me enganar, e nem encontro razões para continuar. Eu mudei sim, estou cansado, e quem nunca esteve? Não encontro mais meu velho eu, ou motivos para trazê-lo de volta à superfície.  Me deixei afogar. Nada consegue expressar em detalhes o que acontece por trás das nossas vidas, e o que nos faz acreditar que é a hora de entregar as cartas. A gente apenas sabe. Na verdade, sabemos quase todas as respostas para as perguntas que temos, mas as verdades são dolorosas demais para serem aceitas. Agora não importa, só preciso de um bom copo de café e uma dose de realidade para me manter acordado, nunca durmo por muito tempo, meus sonhos sempre foram ruins.

Cansaço

Um dia você acorda pensativo, e já não se gosta tanto. Senta na cama, pensa e repensa, no corpo e na mente, no equilíbrio, pensa até nas pessoas. Se sente insatisfeito, perder ou ganhar peso, o ombro, o cabelo. Os olhos ardem, o dia se mostra terrível, repetitivo, terrivelmente repetitivo. Um dia você acorda, e pensa em coisas que não costuma pensar, no sol, no ar, na água contaminada que escorre pelas torneiras, no cigarro, no álcool, nos vícios, e pensa até na morte. Até que ano vamos durar? Pra qual direção estamos nos movendo? Você pensa no lixo, no barulho poluído, nas suas razões, nos carros, nas pessoas dentro dos carros, cria anagramas confusos e vai deixando pela metade, projetos, amores, Jesus e o Diabo. Você se sente cansado, e cada vez sabe menos sobre o que acontece, ou como pensar, ou como parar de pensar. Quanta bobagem, isso nunca tem um fim, porque sempre estaremos errando e nos cansando dos erros, pensando sobre as mesmas coisas que acontecem da porta pra lá, criando expectativas que nos deixarão frustrados ou felizes, até que não tenha mais o que consertar, ou algo sobre se pensar. Ou até que deixemos de existir.

Ser imortal

Vivemos um dia após outro, como se nunca fossemos morrer, temos a sensação de imortalidade. Lembro de uma viagem que fiz até Belo Horizonte, de carro, haviam mensagens nas montanhas, "caminhoneiro jesus te ama", e o GPS mandava dirigir com cuidado. Bom, passamos em frente à um acidente na BR-40, eu nunca havia visto uma cena tão grotesca em minha vida, o sangue banhava o asfalto esburacado. Haviam muitos policiais no local, não pareciam nem um pouco surpresos ou abalados com aquela cena terrível, talvez seja por isso que a maioria dos policiais que se aposentam se tornam humanos de pedra, já viram coisas demais. Haviam muitos carros com gavetas levando o que sobrou de uma colisão frontal entre dois carros lotados, que já nem se pareciam carros, nenhum sobrevivente, apenas um monte de sucada. Era uma terça-feira, um sol escaldante, as plantas em torno da estrada pareciam implorar por água, lugar deserto, não havia nada além de estrada nos próximos 40km. Que dia e lugar horrível para se morrer. Isso me fez pensar, quantas vezes saímos de alguns lugares sem saber se iremos ou não voltar? E o pior, quantas pessoas deixamos partir sem antes dizer o quanto elas eram especiais para nós? A partir do momento que você entende que estamos todos caminhando em direção ao fim, aprende a não deixar para amanhã o que você poderia ter dito ontem. As pessoas se vão, enquanto você assiste e espera que a coragem surja no dia seguinte. O seu amor, seu carinho, sua saudade ou tristeza, uma hora não poderão ser ditas. Nesse momento, não restará mais nada. Nunca guarde o que tem a dizer, às vezes o dia se vai antes do sol.

É fácil ser o vilão

Para muitos não passei de um maldito egoísta, mas eu sabia que guardava algo importante em mim, que se tornava mais valioso à medida que o escondia de todos. Eu nunca soube dizer o que eu estava escondendo, ou de quem eu estava fugindo. Mas era bom e necessário, mesmo não havendo exatidão. Nunca quis ser odiado, mas também não queria ser vulnerável me entregando facilmente. Guardei meu verdadeiro ser em lugar que só eu sei. Me vesti de pessoa sem alma, atrás de gestos confusos. Eu estava tentando me proteger da Humanidade. Mas não sabia porquê as pessoas nunca me pareciam boas o bastante para que eu pudesse ser bom o bastante. Independente do que fosse aquilo que guardei com tanto cuidado, não era algo que poderia estar nas mãos de qualquer um. Não queria que mexessem na minha bagunça. Vai ver que no fundo, todos estamos esperando alguém que mereça conhecer a pessoa que vive dentro dos nossos blocos de pedra.